Entrevista com Dra. Vani Kenski sobre Educação na Era Digital

– 31 de Janeiro de 2020 –

Vani Moreira Kenski é Mestre e Doutora em Educação. Graduada em Geografia e Pedagogia. Professora e orientadora de Mestrado e Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação da USP. Diretora da SITE Educacional. Autora de vários livros e artigos sobre  “Design Instrucional”, “Educação e Tecnologias” e “Educação a Distância”.

1. Como a transformação digital tem impactado nas metodologias e práticas atuais de ensino?

A facilidade de acesso às informações nos meios digitais transforma as práticas de ensino. Saímos da transmissão de informações apenas pela orientação de docentes e das leituras acadêmicas clássicas e duelamos com dados facilmente acessáveis pelos estudantes em seus celulares, tablets etc. em todas as áreas do conhecimento. O ensino híbrido já é realidade e não temos mais nos meios universitários a possibilidade de cursos fechados, com informações emanadas exclusivamente do professor e das bibliografias que ele indica. Os temas das disciplinas são explorados pelos estudantes em pesquisas variadas na internet.

No digital o estudante encontra informações plenas, com textos, imagens, vídeos. Palestras e depoimentos de pesquisadores – que são referências nos assuntos tratados – disponibilizadas em condições iguais de acesso às falas de curiosos e ignorantes, palpiteiros. Os dados obtidos nessas consultas abertas nem sempre são confiáveis, por diversas razões, mas se tornam verdadeiros para muitos estudantes, mais do que as informações trabalhadas pelo professor.

Há necessidade de que as práticas docentes levem os estudantes ao desenvolvimento da capacidade de análise crítica dos dados acessados e saiba diferenciar as informações e suas origens. Criar formas de contextualização permanente, por meio de diálogos e trocas comunicativas entre todos. Para isto, é preciso a adoção de metodologias ativas de ensino que levem à participação dos estudantes no processo de ensinar-aprender em um ambiente aberto à reflexão, comunicação e colaboração.

2. Que conhecimentos e competências são exigidos dos professores que desejam se manter qualificados na era digital?

A ênfase da formação docente não deve ser somente para o domínio de conhecimentos e o uso das tecnologias. É preciso aprender a desenvolver formas mais comunicativas de ensino como, por exemplo, oferecer oportunidades de compartilhamento de informações e troca de opiniões. Criar ocasiões para que os estudantes possam refletir criticamente sobre o que leem em livros, revistas e o que acessam na internet sobre determinado tema.

O modelo educacional orientado pela cultura digital contemporânea deve ser flexível. Quanto mais atender aos ritmos individuais de aprendizagem dos estudantes e buscar desafios que sejam significativos para eles, melhores serão suas condições de sucesso. Processos de aprendizagem em redes, formadas por professores e alunos, são viabilizados pelas mídias digitais. Eles possibilitam trocas comunicativas, o compartilhamento e a formação de equipes para a compreensão dos conteúdos problematizados. Encaminham para movimentos de reflexão, discussão, ação e avaliação contextualizados e a busca de novos saberes. A evolução dos meios e aplicativos digitais e a cultura decorrente do seu uso ampliado pelos estudantes, vão exigir que professores de todos os níveis estejam em permanente processo de formação.

A atuação de docentes na Idade da Mídia Digital vai lhes exigir competências como criatividade, criticidade, comunicação e colaboração. As atuações em redes digitais auxiliam este processo formativo. Trocas e parcerias entre docentes, estudantes, pessoas e instituições da sociedade comprometidas com o mesmo tipo de conhecimento e ação resultam em aprendizagens mais significativas, que beneficiam a todos os envolvidos. Os professores precisam sair do foco fechado e exclusivo da relação professor- aluno e conteúdos e procurar estabelecer elos entre o que está sendo ensinado/aprendido e o contexto em que as aprendizagens podem ser utilizadas.

3. Na sua opinião já são percebidas mudanças significativas nos modos de ensinar na atualidade?

Existem inúmeras mudanças nos atuais modos de ensinar. O crescimento do número de alunos em cursos à distância e semipresenciais é um dado que mostra a relevância dessas modalidades. Muitos são os professores que desenvolvem projetos orientados por metodologias ativas, adequando-as às realidades de suas disciplinas e aos seus alunos. A maioria dessas ações se apoiam no uso dos recursos digitais disponíveis em cursos híbridos ou totalmente a distância. Além disso, várias são as IES que criaram espaços de formação continuada para os seus docentes e desenvolvem parcerias com a sociedade para a viabilização de práticas inovadoras, coerentes com a realidade.

4. Como adequar os processos educacionais aos objetivos que levam os alunos a perceberem a importância do “aprender a aprender”, “aprender a ser”, “aprender a fazer” e ”aprender a viver juntos”, conceitos fundamentais apontados por Delors para a Educação do Século XXI?

O avanço da cultura digital se refletiu na UNESCO que, depois destes princípios propostos pela equipe coordenada por Delors, já apresentou muitos outros que acompanham, de certa forma, as transformações ocorridas no mundo nas últimas duas décadas deste século. A estes princípios formulados no final do século 19 foram agregados outros que orientam a Educação para a colaboração, sobretudo. Entre eles se destacam: a criação de equipes e a formação de redes para a superação de múltiplos desafios de aprendizagem. Envolve o uso de vários ambientes virtuais e aplicativos móveis (blended learning) e a possibilidade de permanente comunicação e cocriação.

Essas mudanças levam a necessidade de uso de diferenciados tipos de práticas e dinâmicas ativas e novas propostas avaliativas (que incluem procedimentos de auto e hetero-avaliações). Exigem também o fortalecimento da presença e da mediação do docente, com acompanhamento próximo, participação e feedback constante para as iniciativas dos estudantes.

Novos objetivos estão previstos pela Unesco para a Educação para esta nova década de 2020 a 2030. Eles se vinculam à inclusão, educação de qualidade e a educação ao longo da vida, para todos. Isto sem considerar os novos desafios à Educação com a ampliação dos processos de inteligência artificial no ensino.

Ou seja, a adequação dos processos educacionais na atualidade é a de se posicionar em permanente estado de mudança, de transição. Não há como se estabilizar e continuar durante anos repetindo o que já deu certo. Ao contrário, é preciso estar atento às mudanças, acompanhar os movimentos da sociedade e as transformações disruptivas provocadas pelas inovações tecnológicas.

Os novos desafios à educação, ao que parece surgirão das mudanças provocadas pela disseminação das tecnologias 4.0/5.0. Elas irão replicar em educações para novos conhecimentos e habilidades que necessariamente irão exigir alterações significativas nos currículos dos cursos e em parcerias das universidades com diversos setores da sociedade. Não há como se acomodar. O movimento é de mudança contínua nas educações.

5. Quais são os maiores desafios enfrentados pelas Instituições Educacionais de Ensino Superior na formação dos novos professores?

Não sei se são os maiores, mas os mais frequentes são os ligados à própria formação dos atuais professores universitários. A maioria dos docentes universitários foram formados para a pesquisa, não para o ensino. Em seus cursos de Graduação, Mestrado, Doutorado… desenvolveram competências para serem excelentes pesquisadores. Pouca atenção foi dada no passado à formação dos docentes de ensino superior. Os próprios processos seletivos para ingresso e progressão na carreira universitária se orientam até o momento para a apresentação dos candidatos em aulas didáticas baseadas na oralidade e no protagonismo do docente. Esta visão tradicional posiciona os professores como o centro do processo formativo, fortalecendo o paradigma do ensino com direção única: a do professor que centraliza as fontes. Ao chegarem diante de seus novos alunos estes professores sentem a fragilidade de suas formações para a docência na atualidade e buscam, muitas vezes individualmente, atualizações e formações mais adequadas.

Em pesquisa recente de doutorado feita por minha orientanda foi identificado o esforço de cada professor universitário para sua melhor formação como docente na atualidade. Por iniciativa própria os professores entrevistados buscaram formações pedagógicas mais atuais em livros, cursos e eventos formativos Neste sentido, a criação pelas IES de programas permanentes para a formação pedagógica continuada dos seus docentes é essencial.

6. As TICs possibilitam aos indivíduos ter acesso a novos espaços de conhecimento, de interação e de comunicação. Como isso impacta nas formas de o professor ensinar?

São múltiplos os impactos e já apresentei alguns nas respostas anteriores. Gostaria, no entanto, de destacar a importância dos equipamentos móveis no ensino. Mobilidade, comunicabilidade, a possibilidade de compartilhar imagens, vídeos e apresentações orais em tempo real, de qualquer local e a qualquer hora, geram grandes mudanças nos processos de ensino e de aprendizagem. A comunicação, as trocas de informações e interações possibilitadas pelo uso de aplicativos móveis em situações de ensino viabilizam o desenvolvimento de projetos de aprendizagem em novas bases que desafiam positivamente os alunos para a aprendizagem.

Posso dizer que tenho contatos maiores e mais constantes com os estudantes por meio dos dispositivos móveis. Eles tiram dúvidas, apresentam seus trabalhos, gravam ações ligadas à disciplina e as compartilham comigo e com os seus colegas. O compartilhamento em tempo real mobiliza os participantes e causa interações entre eles para o oferecimento de comentários, indicação de pontos de melhoria, aprofundamentos e esclarecimentos. A comunidade-turma se movimenta com liberdade e todos conseguem aprender de forma consistente e participativa.

7. Os sucessivos avanços tecnológicos têm refletido nas formas de ensinar e de aprender. Qual é o papel do professor e dos alunos nesses contextos?

O principal papel do professor é o de ensinar. Ensinar sobretudo a pensar, raciocinar e saber comunicar. Sua base é formada pelos conhecimentos e experiências que foram conquistados, aprendidos, pesquisados e refletidos durante décadas em seu processo de formação acadêmica. Isto não o coloca como único detentor da informação, mas como autoridade para trabalhar com os alunos e ajudá-los a superar desafios e analisar criticamente as informações e posicionamentos sobre o que precisa ser aprendido. Para isto, ele precisa oferecer oportunidades para a comunicação, a criatividade, a colaboração e o posicionamento crítico dos estudantes em suas aulas. Criar condições para a participação de todos em atividades que os desafiem a refletir, discutir e colaborar para que todos aprendam.

O estudante precisa estar preparado para a ação. Se deseja aprender tem que participar ativamente, ter disciplina, respeitar prazos e saber se comunicar com todos os envolvidos no processo de formação (professores e os outros estudantes, sobretudo). Precisa estar aberto para a colaboração com seus colegas, procurar desenvolver espírito de equipe e se conscientizar de que é o principal responsável pela qualidade de suas próprias aprendizagens.

8. O que é fazer educação na era digital?

Antes de tudo é compreender e respeitar as diferenças entre as culturas, os contextos e, sobretudo, as pessoas. Orientar-se para a personalização das formações, voltadas não mais para uma determinada profissão, um mesmo tipo de emprego. As mudanças tecnológicas das últimas décadas evidenciam as transformações plenas no mundo do trabalho e dos perfis dos profissionais. Devemos ser professores universitários que contribuem com os nossos conhecimentos para a aprendizagem e a formação plena de pessoas, competentes e capazes de atuarem nos mais diferenciados setores profissionais. Os existentes e os que virão a existir.

A educação precisa se destacar da formação fechada e compartimentada de trabalhadores, orientada para atuação profissional em espaços que cada vez mais deixam de existir, pelo menos na forma como vivenciamos em décadas passadas. A educação na era digital deve estimular a formação humanizada, baseada em hard skills (conhecimentos formais e formação técnica) e, principalmente, soft skills (comunicação, empatia, colaboração, resiliência e participação em equipes). Aprender a conviver com as diferenças e as mudanças, com ênfase em habilidades e competências relacionadas ao comportamento humano, que se modificam a partir da comunicação, a vivência de novas experiências e a interação com outras pessoas.