Entrevista com Aristóteles Moreira Filho Sobre incentivo ao desenvolvimento tecnológico e vacinas

– 27 de maio de 2021 –

Aristóteles Moreira Filho, LL.M. pela Ludwig-Maximilians Universität München, Alemanha. Doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisador visitante no Max Planck Institute for Tax Law and Public Finance, Munique, Alemanha. Desenvolve pesquisa nas áreas de Direito da Inovação e de Direito Tributário e é colaborador do CEST.

1. Que políticas públicas estão sendo usadas para o desenvolvimento de vacinas da Covid-19?

Há um conjunto de políticas públicas que são utilizadas para fomentar a inovação na economia, cada qual com seu perfil e sua vocação. Exemplos clássicos são as patentes, os subsídios diretos, as compras governamentais e os incentivos fiscais.
Quando se fala de pesquisa voltada ao desenvolvimento de vacinas para Covid, tem-se um desafio altamente complexo. Não apenas se trata de desenvolver um imunizante para um vírus antes desconhecido, mas também de implementar uma infraestrutura de produção e distribuição de grande escala, capaz de atender às necessidades de vacinar toda a população, em um espaço exíguo de tempo. As vacinas devem ser ainda ofertadas em condições de preço que permitam o acesso a todos, nos países ricos e também nos países periféricos, sob pena de não se obter êxito na contenção da difusão do vírus e de suas variantes.
A circunstância de que uma vacina detém um valor para a sociedade que é muito superior ao valor que lhe possa atribuir um indivíduo ou empresa significa que os mecanismos de mercado não são aptos a remunerar o esforço do ente privado no desenvolvimento da vacina e ao mesmo tempo viabilizar o amplo acesso da população, garantindo o objetivo de promover a sua ampla imunização. Daí a necessidade de intervenção estatal, financiando a iniciativa privada no desenvolvimento de tais projetos, o que é uma prática adotada em todo o mundo.
A experiência internacional consolidou, para projetos de desenvolvimento e produção de vacinas em grande escala, o instrumento do compromisso de mercado antecipado (Advance Market Commitment – AMC) ou contrato de compra antecipada (Advanced Purchase Agreement – APA). Esse tipo de estrutura jurídico-institucional permite que o Estado incentive o desenvolvimento de determinada tecnologia, bem como os investimentos para sua produção em massa, ao assegurar, através do compromisso de compra, um mercado mínimo futuro para o produto a ser desenvolvido. Esse mecanismo assegura, por um lado, uma rentabilidade para o esforço tecnológico empreendido pelo ente privado, ao mesmo tempo em que, para o Estado, garante que o produto desenvolvido atenderá às demandas da sociedade e será oferecido por um preço acessível. O AMC foi utilizado pela primeira vez em 2007 pela Aliança Global das Vacinas (GAVI) no desenvolvimento da vacina pneumocócica conjugada e se disseminou em todo o mundo. Foi utilizado pela maior parte dos países protagonistas no desenvolvimento das vacinas contra a Covid-19, a exemplo dos EUA e da União Europeia.
O Brasil detém em sua legislação, desde 2016, o instrumento da encomenda tecnológica, que incorpora características do AMC. A encomenda tecnológica foi a modelagem utilizada pela Fiocruz na contratação, junto à farmacêutica AstraZeneca, da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford.

2. Que países dão maior incentivo para o desenvolvimento e produção de vacinas? Por que estão esses países na dianteira?

A análise dos projetos que geraram as primeiras vacinas comprovadamente eficazes contra a Covid-19 indica alguns padrões claros.
Em primeiro lugar, houve injeção maciça de recursos públicos para que as empresas e instituições de pesquisa realizassem os esforços tecnológicos. A atuação do Estado compartilhando o risco tecnológico com os entes privados é uma necessidade decorrente do alto risco, da grande escala, do caráter urgente e estratégico de tais projetos, mas também do predominante valor social atribuído aos imunizantes do SARS-CoV-2, cuja pandemia causou tamanho impacto no estilo de vida, nas atividades econômicas, culturais e no bem-estar da população mundial. Na média mundial, mais de 90% dos recursos empregados nos projetos de desenvolvimento das vacinas para Covid-19 tiveram origem estatal.
Em segundo lugar, houve um trabalho agressivo dos formuladores de políticas para assegurar arranjos jurídico-institucionais que otimizassem os incentivos para o desenvolvimento e a fabricação das vacinas. Nesse sentido, diversos instrumentos foram combinados, a exemplo do ACM para assegurar a compra antecipada dos imunizantes em desenvolvimento, mas também de subsídios diretos para custear os trabalhos de pesquisa e desenvolvimento. Empresas como a Moderna e a Biontech tiveram 100% dos seus gastos de P&D custeados pelo Estado. No Brasil, o uso da encomenda tecnológica permite a combinação de mecanismos de ACM (incentivos “pull” ou de aplicação ex post) com mecanismos de subsídio direto (incentivos “push” ou de aplicação ex ante), o que permite não apenas assegurar mercado e preço para a vacina a ser desenvolvida, mas também compartilhar com o ente privado o risco das atividades de P&D.
Outro item decisivo nas estratégias de desenvolvimento das vacinas foi a implementação de uma infraestrutura para a fabricação e distribuição dos imunizantes em larga escala. Mais uma vez, os acordos de compra antecipada foram fundamentais para assegurar a transferência de tecnologia para que plantas de outras empresas e instituições, capazes de produzir vacinas, fossem utilizadas para garantir o suprimento necessário à elevada demanda para as vacinas contra a Covid-19. Aqui, os países que não têm uma estrutura pública voltada à produção de vacinas e tampouco empresas farmacêuticas capazes de produzi-las, apresentam uma dificuldade especial em atender à sua demanda interna de vacinação. O Brasil contou com instituições públicas de reconhecida excelência para desenvolver esse trabalho, com destaque para o Instituto Butantan, a Fiocruz e, no que se refere à logística de distribuição e aplicação, o Sistema Único de Saúde.
Por fim, não se pode desenvolver vacina sem capacidade tecnológica integrada no sistema nacional de inovação. Evidentemente que os países que detêm conhecimento na área de biotecnologia, abrigando empresas e instituições de pesquisa com experiência no desenvolvimento de imunizantes de alta complexidade, estarão sempre na liderança do desenvolvimento de vacinas como a da Covid-19. Como exemplo disso, tem-se o caso das vacinas baseadas no RNA mensageiro (mRNA), técnica aplicada nos imunizantes da Moderna e da Biontech: essas vacinas utilizam uma tecnologia desenvolvida nos EUA pela agência estatal de saúde National Institutes of Health (NIH), que detém inclusive a patente da invenção.

3. Os Estados Unidos estão pela primeira vez falando da quebra de patentes das vacinas. Este é um processo fácil de ser implementado? O que está por trás do processo de quebra de patente de vacinas?

A expressão “quebra de patentes” se popularizou no Brasil especialmente pela atuação do Ministério da Saúde sob a gestão do Min. José Serra, que determinou o licenciamento compulsório de drogas utilizadas no combate ao vírus HIV. O licenciamento compulsório não implica, porém, uma violação ao direito de propriedade intelectual, mas sim um mecanismo legalmente previsto para que os governos possam viabilizar, sob determinadas condições, a utilização de tecnologia patenteada sem o consentimento do seu titular.
O que os EUA estão propondo agora não corresponde, porém, ao licenciamento compulsório, mas sim à suspensão da aplicação das regras do acordo TRIPS, que protege a propriedade intelectual dentro do sistema GATT/OMC, aplicáveis às patentes relacionadas aos imunizantes voltados ao combate da Covid-19.
A suspensão da proteção patentária não é, porém, algo trivial.
A começar do quórum, que exige a aprovação de ¾ dos países membros da OMC.
O principal desafio relacionado à suspensão das patentes reside, porém, na circunstância de que, no caso das vacinas para a Covid-19, não são as patentes o principal mecanismo atuante na rentabilização e na proteção da tecnologia aí empregada. Boa parte das vacinas contra a Covid-19 sequer é patenteada.
Vacinas não são como drogas comuns, que são formadas por pequenas moléculas de fácil identificação, reprodução e que, portanto, demandam proteção via propriedade intelectual registrada. As vacinas são produtos complexos de biotecnologia, cuja fabricação requer muito mais do que o conhecimento formalizado ou uma receita, exigindo domínio de vasto volume de conhecimento tácito (know-how), cuja absorção invariavelmente requer a cooperação do desenvolvedor via transferência de tecnologia. Tampouco existe um marco regulatório para biogenéricos, o que permitiria que biossimilares fossem sintetizados sem a necessidade de testes clínicos, que, portanto, precisam ser repetidos como se de vacinas novas se tratasse.
Além do domínio da tecnologia desenvolvida na concepção das vacinas, outro desafio relacionado à difusão desses imunizantes mundo afora, e especialmente nos países em desenvolvimento, está relacionado à existência de estrutura produtiva necessária à sintetização desses produtos. Empregando técnicas avançadas de biotecnologia, como a do RNA mensageiro, que pela primeira vez na história passaram a ser fabricadas em grande escala, as vacinas contra a Covid-19 requerem plantas dotadas de estrutura avançada de manipulação biológica, dotadas dos níveis mais elevados de biossegurança, o que a maioria dos países em desenvolvimento não dispõe. Neste momento em que há sufocante demanda global por vacinas e uma oferta que não consegue ser perto de suficiente para atender àquela, não existem indústrias farmacêuticas com plantas ociosas à espera da suspensão de patentes para produzir vacinas contra a Covid-19.
O resultado é que a própria Organização Mundial da Saúde reconheceu que suspender as patentes relacionadas às vacinas de Covid-19 não resolve o problema do acesso aos imunizantes. É necessário transferir tecnologia para os países em desenvolvimento e implementar estruturas produtivas capazes de assumir a fabricação em escala desses produtos. Nesse contexto, a proposta de suspensão das patentes, encabeçada pelos países em desenvolvimento e agora apoiada pelos EUA, tem mais o potencial de pressionar as farmacêuticas a promover voluntariamente a transferência de tecnologia para a produção local das vacinas do que de solucionar esse grande problema mundial de saúde pública.

4. O Brasil já quebrou patente de medicamento para Aids quando o Ministro da Saúde era José Serra. Há possibilidades agora de aceitar quebrar patentes de vacinas de Covid-19, visando o bem comum da humanidade?

O Ministério da Saúde à época da gestão do Min. José Serra determinou o licenciamento compulsório de drogas utilizadas no combate ao vírus HIV. O licenciamento compulsório está previsto no acordo TRIPS, bem como na lei brasileira de propriedade industrial, e é uma possibilidade que está aberta à utilização do governo brasileiro. O art. 68 da Lei nº 9.279/96 determina que o titular da patente fica sujeito a ter a patente licenciada compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico, comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou judicial. Isso significa que, quando a exclusividade de fabricação do produto com a tecnologia patenteada levar a preços que impeçam o acesso ao medicamento, pode-se utilizar a licença compulsória para permitir que terceiros explorem a tecnologia, produzindo o produto patenteado, sem a autorização do titular da patente, que, porém, permanece tendo direito a ser remunerado de pelo uso de sua tecnologia, via royalties arbitrados pelo INPI com base no valor econômico da tecnologia licenciada.
O atual governo brasileiro manifesta, desde o início da pandemia, um posicionamento contrário à suspensão das patentes, decorrente de um alinhamento do Presidente da República e do Ministério da Economia com os EUA (gestão Trump), a Europa ocidental e os interesses da indústria farmacêutica. Na visão do governo brasileiro, suspender as patentes retira o incentivo das empresas a inovar, de modo que as patentes são uma forma de garantir a rentabilização do investimento realizado no desenvolvimento dos imunizantes. A tese, que em si é verdadeira, não pode, porém, ser aplicada de forma absoluta, de modo que buscar um compromisso entre os interesses da indústria e o interesse social presente na proteção à saúde pública não implica um entrave à inovação. Há instrumentos legais e arranjos jurídico-institucionais que permitem convergir esses dois polos e é isso que os formuladores de políticas estão buscando em todo o mundo, especialmente nesse cenário de pandemia global.
Vale lembrar ainda que os EUA sob o governo Biden mudaram sua posição histórica contra a suspensão das patentes, passando a defender a medida, o que ainda não foi, porém, suficiente para causar qualquer mudança na posição do governo brasileiro.

5. Quem está financiando o desenvolvimento de vacinas pelo mundo? Como isso ocorre e por quê?

Os principais financiadores das pesquisas para desenvolvimento de vacinas para a Covid-19 são os EUA, com cerca de US$2,2 bi, a Alemanha com US$1,5 bi e o Reino Unido com o equivalente a US$0,5 bi. O protagonismo desses países no apoio financeiro a tais pesquisas reflete, por um lado, o poderio financeiro e a capacidade fiscal para disponibilizar esse volume de recursos. Por outro, espelha a presença de uma forte indústria farmacêutica em suas economias, na medida em que a corrida para as vacinas é também uma corrida pelo protagonismo econômico nesse mercado que se tornou tão relevante e disputado.
Não se deve desconsiderar que, além do subsidiamento das atividades de P&D, os países que contrataram a compra antecipada dos imunizantes via AMC também acabam custeando de alguma forma o desenvolvimento das vacinas. Aí se destacam não apenas os países que produzem os imunizantes em sua indústria, mas também aqueles que são grandes mercados consumidores, pelo tamanho da sua população. Dentre os maiores compradores estão a União Europeia, os EUA, a União Africana e o Brasil.

6. Qual é o grande entrave para se colocar a geração de tecnologia no livre mercado, a serviço da sociedade como um todo?

O desafio de se desenvolver inovação a serviço da sociedade reside em harmonizar, de forma ótima e conforme a natureza e o uso da tecnologia a ser desenvolvida, mecanismos de mercado com o interesse social e a participação pública, sem que um iniba o outro.
Os mecanismos de mercado são essenciais para induzir a livre iniciativa e os investimentos privados. Sem lucro, o particular não coloca seus recursos e sua engenhosidade a serviço da técnica e da evolução dos níveis tecnológicos e de bem-estar, que ulteriormente beneficiam toda a sociedade. Por outro lado, há competências tecnológicas em que o interesse público é predominante. Esse é o caso da saúde, especialmente quando se trata de medicamentos para doenças graves e vacinas. Nessas áreas, é fundamental complementar os mecanismos de mercado com a intervenção do Estado, via suprimento de recursos através, por exemplo, de subsídios, compras governamentais, prêmios ou incentivos fiscais. Existe, porém, crescente consenso na literatura de que o Estado deve participar não apenas via fomento, mas também via infraestrutura institucional de pesquisa, especialmente em áreas estratégicas, em projetos de altíssimo risco e longo prazo, em que o interesse social é predominante e as perspectivas de retorno inibem a iniciativa privada. No campo do desenvolvimento e da produção de vacinas, essa mudança de paradigmas seria bem-vinda.

9. Quais são os incentivos dados aos Institutos Butantan e Fiocruz para que desenvolvam vacinas para a Covid-19? Se existem, o que a sociedade brasileira pode esperar? Caso esses incentivos inexistam, quais são seus efeitos a curto, médio e longo prazo?

O Instituto Butantan e a Fiocruz são instituições públicas que desenvolvem um papel estratégico não apenas no sistema público de saúde, mas também no sistema nacional de inovação. Como instituições públicas, elas são mantidas por recursos públicos, do governo do Estado de São Paulo, no caso do primeiro, e do governo federal, no caso da segunda.
Dado que não são empresas e não disputam o mercado de saúde, instituições como o Butantan e a Fiocruz não têm no lucro um incentivo para a sua atuação, devendo ser estimuladas através de outros mecanismos financeiros, bem como mecanismos não-financeiros.
Nem sempre se atenta para o fato de que no ambiente científico as recompensas não-financeiras desenvolvem um papel relevante e complementar àquelas financeiras. O reconhecimento do cientista pelo seu trabalho de pesquisa, ao conferir-lhe reputação e credibilidade, é um estímulo fundamental para o desenvolvimento de suas atividades. Isso significa que a possibilidade de estarem engajadas em projetos relevantes e estratégicos para o país e a sociedade brasileira será sempre um incentivo para instituições como o Butantan e a Fiocruz. Nesse contexto, a atuação de ambas no combate à Covid-19, inclusive na produção de vacinas, é uma oportunidade ímpar para reposicionar tais instituições na estrutura do Estado e na sociedade brasileira.
Valorizar tais instituições, porém, implica também conceder-lhes os meios financeiros necessários para poderem desempenhar suas atividades com a excelência que buscam envergar. Isso requer a disponibilização de recursos orçamentários que viabilizem um planejamento compatível com a manutenção e a expansão de um quadro de pesquisadores de alto nível, bem como com a manutenção e a expansão das suas atividades científicas. A perspectiva de um mundo com permanentes riscos biológicos exigirá que essas instituições sejam dotadas de uma infraestrutura humana e material à altura dos desafios do futuro. Esse é sem dúvida um ponto em que o Brasil tem regredido. As políticas de enxugamento do Estado implementadas por gestões adeptas da ideologia neoliberal atingiram fortemente instituições de pesquisa como o Butantan e a Fiocruz. A tais políticas se somou a crise fiscal vivida pelo Brasil na última década. O risco que decorre da desestruturação dessas instituições, que não é mais de longo, mas sim de curto prazo, é que nos tornemos incapazes de proteger, com autonomia, a nossa população dos riscos biológicos e de saúde, tornando-nos reféns da indústria estrangeira e até mesmo de interesses geopolíticos de outros países.
Por fim, para estimular instituições públicas como o Butantan e a Fiocruz, é necessário conceder-lhes autonomia para desenvolver projetos diretamente com a iniciativa privada, colocando sua expertise a serviço da economia, tanto no Brasil como no exterior. Dinamizar essa vertente de atuação permite, por um lado, integrar tais instituições nas cadeias de geração de valor, o que é fundamental num mundo em que a geração de conhecimento e inovação na economia é cada vez mais descentralizada. Por outro lado, as parcerias com a iniciativa privada abrem possibilidades adicionais de captação de recurso para tais instituições, algo fundamental num cenário de cada vez maior escassez de recursos orçamentários. A legislação brasileira evoluiu bastante nos últimos anos quanto às possibilidades de contratação entre o Estado, instituições públicas e a iniciativa privada, especialmente em projetos de ciência, tecnologia e inovação. É necessário, porém, avançar com mudanças culturais para que tais marcos normativos sejam utilizados em todo o seu potencial transformador.

10. Na sua opinião, quem está mais bem preparado para desenvolver vacinas: o Estado ou a Indústria Farmacêutica? A que isso se deve?
Desde o início do séc. XX se consolidou na teoria e na prática da economia uma divisão do trabalho segundo a qual, no processo de inovação, a pesquisa básica é responsabilidade do Estado, enquanto a pesquisa aplicada e o desenvolvimento experimental devem ficar a cargo da iniciativa privada.

Essa racionalidade decorre, em boa medida, da concepção do chamado modelo linear de inovação: a geração de inovação se daria num processo em que diversas etapas são concatenadas de forma sequencial, partindo do conhecimento abstrato, na pesquisa básica, e ganhando gradualmente aplicação prática, para passar pela pesquisa aplicada, até chegar na concepção de um novo processo ou novo produto como resultado do desenvolvimento experimental. Dado que o conhecimento abstrato, típico da pesquisa básica, não detém valor comercial, senão essencialmente cognitivo ou científico, deveria ter seu desenvolvimento impulsionado pelo Estado, através de instituições de pesquisa e universidades. À medida que o conhecimento gerado pela pesquisa básica vai adquirindo aplicabilidade prática, com o desenvolvimento de novos produtos e processos, a iniciativa privada, de atuação mais eficiente no ambiente de mercado, passa a assumir o protagonismo.
Essa divisão do trabalho se vê em alguma medida nas vacinas contra a Covid-19, especialmente nos países de economia capitalista mais avançada. O caso das vacinas da Moderna e da Pfizer/Biontech é ilustrativo: a tecnologia do RNA mensageiro, resultado de esforços intensivos de pesquisa básica e aplicada, foi desenvolvida pelo Estado norte-americano no NIH; a utilização dessa tecnologia nas vacinas da Covid-19 foi desenvolvida pelas empresas privadas, que fabricam e vendem os imunizantes, inclusive ao próprio governo dos EUA.
Gradualmente se forma um consenso, porém, de que o Estado deve se engajar mais estruturalmente na geração de inovação em setores estratégicos da economia. O combate à pandemia do Covid-19 veio para reforçar essa necessidade de mudança de paradigmas. Os motivos, diversos, são principalmente dois, um financeiro e outro de segurança nacional.
O motivo financeiro decorre da constatação de que o Estado, ao abrir mão de uma estrutura mais abrangente e se tornar dependente da iniciativa privada, acaba pagando duas vezes: uma quando financia os esforços inovativos privados; outra quando é obrigado a comprar o produto resultante. Na mesma esteira, deixar o produto ser oferecido no mercado pelas empresas em condições de livre precificação, sujeitas apenas à concorrência de outros fabricantes, acaba criando distorções quando se trata de produtos dotados de inestimável valor social como vacinas contra doenças altamente contagiosas.
O motivo de segurança nacional reside em que o estabelecimento e o desenvolvimento da iniciativa privada nos diversos setores da economia é algo extremamente complexo num mundo globalizado. Se o setor privado não consegue competir com seus concorrentes internacionais, o país fica dependente da importação de outros países. O que na maioria dos segmentos econômicos é algo trivial, em outros se torna um grave risco de segurança, o que exigiria a intervenção do Estado para assegurar uma estrutura produtiva mínima e indispensável nos segmentos estratégicos da economia, inclusive no de saúde.

11. O Brasil é um grande importador de insumos para laboratórios e hospitais. Qual é o custo de não se produzir no país os insumos para os medicamentos?

A dependência brasileira da importação de insumos para laboratórios e hospitais tem se mostrado, nessa pandemia da Covid-19, na linha da resposta à pergunta anterior, um risco à segurança nacional. De fato, como muitos outros países, o Brasil abriu mão de deter uma indústria competitiva em diversos setores, que se tornaram vulneráveis à competição internacional, que no setor de manufaturados é, como se sabe, dominada principalmente pela indústria chinesa.
Quando a demanda por esses insumos estratégicos se tornou elevada em todo o mundo, como decorrência da pandemia global, o Brasil se viu tendo que competir com outros países na compra desses produtos, tendo que se sujeitar a uma disputa da geopolítica da saúde e muitas vezes sendo preterido em função do alinhamento internacional promovido pela atual gestão do governo federal. Ao mesmo tempo, o sistema de saúde brasileiro entrava em colapso pela falta de itens básicos como luvas, máscaras, anestésicos e respiradores. O resultado é que o custo de não produzir esses insumos não é apenas econômico, de ter que pagar mais caro em circunstâncias de alta demanda internacional, mas também humano, de conviver com um grande número de mortes decorrentes da falta de itens elementares de saúde pública e atendimento hospitalar.
Como comentado no item anterior, é fundamental que o país seja dotado de políticas que assegurem a produção nacional de itens tão indispensáveis à gestão da saúde pública. A necessidade de uma política industrial, que tem sido ressaltada pelo pensamento econômico mundial posterior à crise de 2008, torna-se ainda mais evidente quando se trata de setores estratégicos, o que a pandemia da Covid-19 claramente demonstrou. A ideia de implementar uma política industrial para restabelecer, na esteira dos desdobramentos da pandemia do coronavírus, a indústria nacional em setores estratégicos da economia está sendo aplicada, por exemplo, pelo governo Biden com o American Jobs Plan.