Sorria, você está sendo filmado: o mercado de consumo na sociedade digital

Autor: Sirlei Pitteri

 

O filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, inspirado no romance de Arthur Clarke (1968), é uma excelente metáfora do contexto social dos anos 1960, no auge da Guerra Fria, em que o poder das organizações envolvidas com temas inovadores e secretos resultariam em consequências polêmicas sobre a sociedade.

A trama central se desenvolve em um ambiente virtual composto por satélites e redes de computadores. A base Terra, a nave Discovery, o computador HAL e a tripulação espacial são os quatro componentes do ambiente colaborativo (e competitivo) concebido para narrar a trajetória da humanidade desde, aproximadamente, quatro milhões de anos antes de Cristo até o ano 2001, sempre abordando a evolução da espécie, a influência da tecnologia nesse crescimento e os “riscos” da inteligência artificial.

Embora Arthur Clarke esclareça que o computador HAL teve seu nome formado pelas iniciais da expressão Heuristic ALgorithm, existe uma forte crença que HAL foi criado com as três letras do alfabeto imediatamente anteriores aos da multinacional IBM, única empresa no negócio de tecnologia da informação (TI) na década de 1960. Um detalhe interessante é que naquela época não existiam referências, ficcionais ou reais, para se criar um ambiente administrativo em que as tecnologias da informação seriam as grandes protagonistas e viabilizadoras de um novo modo de vida que a humanidade presenciaria tempos depois. A partir do momento em que HAL incorpora os sentimentos humanos, ocorre uma ruptura no ambiente de colaboração e o filme termina com uma luta mortal dos astronautas contra o computador, onde o “bem prevalece sobre o mal”.

Essa crença ainda influencia a nossa imaginação pois, as novidades constantemente perturbam, desorganizam e desestabilizam as comunidades por um certo tempo e provocam a necessidade de respostas urgentes. Em sentido mais concreto, as novas maneiras de se fazer as coisas pela utilização das tecnologias trocam as pessoas por máquinas e potencializam a “espionagem”, que sempre existiu, porém, com a proliferação de equipamentos digitais a preços populares, temos a sensação de estar vivendo em um cenário de Big Brother ou de Trumann Show.

Estimulando o consumo em sociedades emergentes

Confirmando as tendências apontadas e para ilustrar o debate, segue-se uma breve análise das facilidades e barreiras encontradas por uma empresa multinacional, atuante no negócio de field marketing, para internacionalizar seu negócio em países emergentes. A expressão, sem tradução para o português, significa literalmente “chão de loja”. Foi criada pela própria empresa para designar o conjunto de serviços prestados aos seus clientes (indústrias e distribuidoras de produtos de consumo).

Assim como as indústrias no século passado, que desenvolveram métodos sofisticados para o aumento da produtividade no “chão de fábrica”, esse modelo de negócio se concentra em desenvolver mecanismos para o aumento do consumo no “chão da loja”, ou seja, nos pontos de vendas. No Brasil, esse modelo de negócio surgiu na década de 1990 e ficou conhecido como trade marketing, que tampouco possui tradução para o português.

Embora a multinacional exista desde a década de 1930, os avanços tecnológicos e a influência de psicólogos e antropólogos norte-americanos ampliaram a sofisticação desse modelo de negócio.  Em essência, o negócio de field marketing tem como objetivo desviar o olhar e a mão do consumidor no ponto de venda, ou seja, tirar a atenção do consumidor do produto do concorrente e atraí-lo para o produto do seu cliente.

Para tanto, algumas estratégias de observação do comportamento dos consumidores nos pontos-de-venda vêm sendo adotadas –  observações diretas ou filmagens das gôndolas com a finalidade de se avaliar o fluxo de pessoas que passam por elas; como essas pessoas se comportam em relação aos produtos; como elas reagem às sensações táteis (frio, calor), visuais, auditivas ou olfativas; quais as dificuldades ou facilidades que as pessoas encontram para alcançar os produtos nas prateleiras e assim por diante. Foram criadas, também, métricas para calcular o percentual de pessoas que se sentiram atraídas pelos produtos ou que interagiram com os mesmos em relação ao total de passantes diante das gôndolas.

A evolução das práticas de gestão das empresas que atuam nessa atividade foram muito aperfeiçoadas pela utilização de sistemas de tecnologia em tempo real, em que os gerentes de categorias de produtos executam varreduras nos pontos de vendas de seus produtos e dos concorrentes,  para identificar os preços mais competitivos e equalizá-los com os preços da concorrência.

Os gerentes vigiam incansavelmente as prateleiras com espaços para preenchê-los com produtos, instantaneamente. O conceito de prateleira vazia mudou do século passado para os tempos atuais. Antes, a prateleira com espaços vazios significava produtividade nas vendas. Hoje, significa que a empresa está deixando de vender, pois a reposição do produto não ocorreu instantaneamente.

Em síntese, podemos nos perguntar: quando vou ao supermercado comprar maionese ou sabonete, quem faz as escolhas? Sou eu ou existe uma competente equipe de mercadólogos por trás das simpáticas câmeras instaladas nos tetos, com uma legenda “sorria, você está sendo filmado”?

A desregulamentação dos mercados e os avanços tecnológicos introduziram novas formas de atuação das grandes multinacionais, criando novos mecanismos de penetração em mercados inexplorados, como o leste europeu, asiático, oriente médio e latino americanos. Essas regiões estão iniciando a prática do consumo intensivo somente nas últimas décadas.

O caso dessa multinacional ilustra bem essa questão. Ela buscou países emergentes para expandir seus negócios de “desviar o olhar dos consumidores para os produtos das suas empresas clientes”. Porém, sua estratégia parece não ter sido bem sucedida no Brasil, ao contrário da Rússia, China, Índia e alguns países árabes.

Ao contrário dos outros países, também principiantes na arte do consumo, as leis brasileiras são rigorosas, tanto no que se refere aos direitos trabalhistas quanto na questão da defesa do consumidor.

Estudos sobre o mercado de consumo na sociedade digital possuem um potencial ainda inexplorado sobre os efeitos das forças locais, que interferem diretamente na aceitação (ou não) de algumas práticas gerenciais. A despeito das recomendações dos especialistas em marketing sobre lançar produtos mundiais (padronização global), são necessárias algumas adaptações para cada sociedade, pois as práticas de gestão e os ciclos de vida de produtos são fortemente influenciados por fatores culturais, incluindo questões étnicas, históricas, religiosas e até místicas.

A maioria dos antropólogos (e outros cientistas sociais influenciados por eles) acreditam que a cultura é, por definição, harmoniosa e adaptativa e os conflitos e sofrimentos são efeitos de intromissões externas.

Assim, a ideia de progresso é suspeita para aqueles comprometidos com o relativismo cultural, em que cada cultura define seus próprios objetivos e sua ética, que não podem ser avaliados em comparação com outras culturas.

Referências

CLARKE, A. C. 2001: A Space Odyssey. United Kingdom: Hutchinson, 1968

UNDERHILL, P. Why We Buy? The Science of Shopping. New York: Simon & Schuster Paperbacks, 1999.

VÄLIKANGAS, L. The Resilient Organization: how adaptative cultures thrive even when strategy fails. New York: McGraw-Hill Companies, Inc., 2010.

HARA, C. Logística: armazenagem, distribuição, trade marketing. Campinas: Alínea, 2013.

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Esse artigo foi desenvolvido com o apoio do Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia da Universidade de São Paulo (CEST-USP).