Direitos trabalhistas no Brasil – o discurso e a prática

Autor: Sirlei Pitteri

O peso ideológico que as leis trabalhistas brasileiras carregam ao longo dos seus 70 anos de existência vem promovendo um intenso debate entre grupos favoráveis ou contrários às adequações dessas leis a um mercado de trabalho heterogêneo e que vem se modificando por inúmeros fatores.

A tentativa mais recente para aproximar o aparato jurídico da realidade empresarial foi a aprovação do Projeto de Lei 4.330/2004 sobre as terceirizações trabalhistas. Sob forte pressão de alguns segmentos contrários ao projeto, o mesmo seguiu para o Senado, gerando polêmica entre os especialistas e entidades representativas de alguns setores. A questão envolvida no debate é flexibilizar as relações de trabalho por meio da terceirização de qualquer atividade empresarial, até então classificadas como atividades-meio e atividades-fim. Opiniões convincentes, tanto de um lado quanto de outro, sugerem duas perguntas: As flexibilizações trabalhistas são necessárias? As leis trabalhistas garantem os direitos dos trabalhadores brasileiros?

A primeira pergunta é fácil de responder, pois todos sabemos que sim: a flexibilização trabalhista é necessária porque o mundo mudou em setenta anos e as relações de trabalho hoje são muito diferentes das do século passado.

A segunda pergunta é difícil de responder e esse estudo tentou buscar elementos para isso. Pelos dados preliminares já é possível responder que não: as leis trabalhistas não garantem os direitos dos trabalhadores – basta acompanhar as notícias na mídia sobre o desemprego crescente e o aumento de microempreendedores individuais que constituem o mais dramático reduto do trabalho informal, agora com uma sofisticação – a ilusão que os ‘pejotizados’ estão protegidos em seus direitos sociais. Essas são perguntas erradas.

Um outro jeito de olhar para a questão dos direitos trabalhistas é buscar respostas se existe coerência entre o discurso e a prática. Já existe uma contradição importante entre a Constituição Federal de 1988 (CF) e as Leis Trabalhistas. A CF traz explícito em seu artigo primeiro que os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa são fundamentos do Estado Democrático de Direito, porém não faz menção sobre o que se entende por livre iniciativa.

Essa premissa é reforçada no artigo 170, em que diz: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social (…)”. Contudo, no artigo 7, que trata dos direitos dos trabalhadores, estão elencados 34 princípios que regulamentam a livre iniciativa com base nos pressupostos da CLT. Desse modo, pode-se concluir que existe um paradoxo entre a expressão livre iniciativa e a regulamentação jurídica, ou seja, patrões e empregados devem ser livres para negociar desde que os empregadores cumpram os 34 princípios da CLT.

A segunda contradição se verifica entre os dois “Brasis”: o Brasil existente no imaginário coletivo e o Brasil real. São frequentes as afirmativas que os problemas brasileiros se resolveriam se o governo criasse uma lei para taxar as grandes fortunas, deixando explícito que as desigualdades nas relações capital-trabalho são promovidas pelas corporações empresariais. Ou seja, os empresários obtém lucros pela exploração do trabalho. Em tese, isso era verdade na época da revolução industrial e deu origem a inúmeros estudos sociológicos que não iremos abordar.

O que nos propomos agora é analisar a demografia dos empregadores brasileiros catalogados no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano de 2013, para verificar a distribuição de empregadores por porte (quantidade de empregados) e por regiões brasileiras.

Dos 5,4 milhões de empregadores brasileiros, mais de dois terços (74%) são micro e pequenas empresas, cujo índice de formalidade é muito baixo (30%). Pode-se inferir que grande parte dessa população é constituída de profissionais liberais e autônomos que aparecem nas estatísticas porque criaram um registro na receita federal como pessoa jurídica – o regime de micro-empreendedor individual (MEI) cujo regime tributário é o simples (SIMEI).

Todos os encargos tributários são calculados com base no faturamento bruto do micro empreendedor e a divisão dos recursos para o sistema de proteção social é efetuada pelo poder federal de acordo com metas baseadas no orçamento da união.

Essa tendência se acentou fortemente nos últimos anos, pois dados da FENACOM de 2016 apontam que o número de microempreendedores individuais (MEIs) ultrapassou o número de micro e pequenas empresas (MPEs). Desde sua criação em 2008, até janeiro de 2016, o país já formalizou mais de 5,7 milhões de micro empreendedores individuais, ou seja, quase 20 % a mais de micro e pequenas  empresas (MPEs) abertas, que totalizam 4,7 milhões.

A estratégia de contratar profisisonais autônomos vem sendo adotada pela maioria das empresas para viabilizar a contratação de pessoal qualificado, cujos salários se situam acima do teto de 10 salários mínimos ou em projetos com tempo determinado. Em linguagem popular é a pejotização, considerada ilegal para a maioria dos juristas.

O percentual de pequenas empresas (até 29 empregados) se situa em torno de 97% do total, as médias somam 2,8% e as grandes não atingem 0,4%. As pequenas e médias empregam 30 milhões de pessoas, porém apenas 22 milhões possuem carteira assinada.

Vale ressaltar as dificuldades dos pequenos empresários em cumprir as leis, principalmente porque suas empresas não possuem estrutura jurídica suficiente, ou na maioria dos casos, estrutura jurídica inexistente, para acompanhar as complicadas e mutáveis regras trabalhistas.

Desse modo, já é possível afirmar que 97% das empresas brasileiras (micro e pequenas) consideram irrelevante a discussão sobre terceirização de atividades-meio ou atividades-fim. Para esse público, todas as demandas de seus negócios são atividades-fim e os direitos trabalhistas não os alcançam. Os micro e pequenos empresários trabalham quando o mercado exige: em período diurno, noturno, feriados ou finais de semanas. Não têm jornada fixa de 40 horas semanais, tampouco férias remuneradas acrescidas de 1/3, não têm décimo terceiro salário e a participação nos lucros é incerta, uma vez que dependem do auto-desempenho e das forças de mercado para a geração de renda.

O que esses dados explicitam é a pouca atenção que tem sido dada para as desigualdades dos direitos trabalhistas, cujas raízes estão na própria história das leis trabalhistas brasileiras. As desigualdades e diferenças quanto aos direitos trabalhistas e sociais provém da seletividade com que a legislação trabalhista foi aplicada pelo Estado brasileiro. A regulamentação do trabalho pela CLT seguiu o modelo de cobertura seletiva de categorias profissionais reconhecidas na época – os operários das grandes indústrias, os operadores dos sistemas de transportes, os funcionários das instituições financeiras e, acima de tudo, os servidores públicos.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi criada em 1943, momento em que se planejava o desenvolvimento econômico brasileiro a partir da ampliação da base industrial, com políticas públicas centralizadas no governo federal e voltadas para o desenvolvimento de infraestrutura para atender às grandes obras industriais. Essa estratégia não resultou na criação de um país industrializado homogeneamente.

O artigo 170 da Constituição Federal traz explícito que a ordem econômica deve ser fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa e tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social. Dentre os princípios do referido artigo destacamos os VII, VIII e IX, que apregoam a redução das desigualdades regionais e sociais; a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte.

Apesar dos quase trinta anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil ainda não encontrou um caminho para destravar o sistema em nível federal e descentralizar as políticas trabalhistas e sociais em consonância com a realidade do mercado de trabalho e tampouco com as especificidades regionais.

A população economicamente ativa (PEA) somava aproximadamente 102,5 milhões de pessoas em 2013. Se apenas 48 milhões de empregos formais aparecem nas estatísticas, o índice de empregos formais é 46%. Ou seja, mais da metade dos brasileiros disponíveis para o trabalho estão fora do sistema formal de empregos.

Existe muito a ser feito para que o Brasil das leis alcance o Brasil da realidade e os princípios constituintes sejam alcançados. Esse debate precisa ser enfrentado a despeito da sua complexidade e do peso ideológico que ele traz à tona. Essas questões colocam em risco os preceitos básicos da cidadania, que independem das convicções conservadoras, liberais ou progressistas, predominantes neste ou naquele período da história brasileira.

Referências

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Este artigo foi desenvolvido com o apoio do CEST (Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia) da Universidade de São Paulo (CEST-USP).